Reflexões na Redenção

Luciana Tomasi
6 min readApr 2, 2021

1- Cidade Fantasma

No começo de março, chegando na minha sempre amada e nunca tão deserta cidade natal de Porto Alegre, fiquei impactada com a energia pesada na atmosfera, fruto do confinamento. A maioria dos seus moradores estavam isolados em suas casas, presos em pleno verão escaldante, ao lado de crianças pequenas agitadas e idosos assustados. É muito injusto ver adolescentes empilhados em apartamentos pequenos, sem ao menos poder namorar, que é a melhor atividade para experimentar a paixão de viver. Foi o encontro com uma cidade que está ou para vender, ou para alugar. Apagada à noite e totalmente pichada de dia. Os primeiros moradores que avistei habitavam as ruas, com suas tendas de saco plástico preto, cachorros magros e muita sujeira em volta. Uma cidade soterrada pelo medo da morte e afogada em desesperança. Tomada pela ignorância, pela indiferença e pela cobiça, num momento que deveria ser de comedimento e solidariedade. Mas, ao sair do túnel na entrada da cidade, me defrontei com a exuberância verde do Parque da Redenção, que é sempre um alento às almas atormentadas.

2- Resistência Cotidiana

Estava afastado da escrita nas mídias. Dei um tempo para refletir e transcender o espaço de nossas bolhas, mas a situação geral está tão complicada que é impossível ficar calada. A saúde mental e a solidariedade pedem algum tipo de manifestação. Após um momento difícil, que fez com que eu repensasse toda minha existência, a Redenção foi para mim um lugar de salvamento cotidiano. Um parque sagrado, que me ajudou a refletir sobre situações difíceis e inesperadas da minha trajetória. Seu nome já conduz à ideia de reparação de um erro, de um vacilo. Sua beleza e placidez plenificam a existência humana e amenizam o ódio generalizado.

3- Bravas árvores

Na Redenção, desde pequena, sempre me sinto na minha pequena floresta. Ali dentro, reflito sobre a degradação galopante das florestas brasileiras, principalmente na Amazônia. Não há lucro imediato que justifique a derrubada de árvores seculares e o envenenamento dos rios. A floresta não tem preço. A exploração predatória da Amazônia tem que parar hoje. Não há mais ponto de pleno retorno ambiental, mas podemos minimizar os muitos danos já feitos. Voltando ao micro, também nos parques de Porto Alegre, as árvores que a grande tormenta derrubou têm que ser todas replantadas. Olhando a água que sai das fontes do parque, penso na redenção dos rios e dos mares do mundo, que só acontecerá se os libertarmos da pesca predatória, de todos os tipos de lixo e da mineração, enfim, da destruição generalizada.

4- Revolta dos bichos

Buscando a redenção de nosso corpo, atacado por um vírus insuportável, parasita celular, micro-organismo que consegue ser a proteína mais odiada de todos os tempos, uma pergunta se impõe: por que ele só mata os “inteligentes” e “criativos” sapiens? Entre minhas respostas encontro: porque os ingênuos e cruéis humanos desequilibraram o planeta Terra, dizimando bichos desenfreadamente e desmatando todo o verde na sua frente. Não tivemos inteligência para perceber a importância da redenção dos campos e das espécies nativas, nem criatividade para produzir sem destruir. Gaia gritando.

5- “Feedback loops”

Mas será que ainda dá tempo para operar uma redenção no planeta Terra? Difícil saber. Temos (nós e o governo) que estudar os “feedback loops”, algo como transformar a retroalimentação ambiental negativa em positiva. Tudo isso deveria ficar claro nesse confinamento. Só que não. É só olhar as inundações e os incêndios nas notícias, realidades dramáticas que aparecem em meio a decadentes e intermináveis “reality shows”. É nítido que a natureza pede socorro urgente. Assim como é visível que são necessárias ações efetivas que distribuam a riqueza excessivamente concentrada em tão poucos. Mas, pior que negar o vírus e as ameaças biológicas, é negar nossas doenças sociais.

6- Nossas façanhas

As imagens de Marte estão fantásticas, mas temos, ao mesmo tempo, que promover a redenção da Terra. Precisa haver uma nova ordem mundial, com reformas estruturais urgentes, que dependem muito da educação qualificada de todos os povos, em todos os continentes. Hoje há multidões de pessoas sem instrução suficiente, manipuladas por notícias falsas, vítimas de qualquer oportunista. Tem que haver discussão, em todas as esferas, do que é realmente importante para a manutenção das mulheres e homens no planeta. Já estamos flertando com a extinção da nossa espécie. A natureza não suporta mais nossos feitos, nem nossas façanhas.

7- Meditação possível

Busco a redenção através da meditação neste parque tão inspirador, desejando sempre que o mundo, cegado há tempo por um capitalismo desprovido de inteligência e imediatista, substitua o mais rápido possível os combustíveis fósseis por opções menos poluidoras. Desejando que o Brasil controle o agronegócio predador, que planta soja a rodo para fazer exportações que são lucrativas financeiramente, mas só aumentam o nosso débito com o meio ambiente. Tem que haver uma nova perspectiva para a alimentação sofrível dos terráqueos. Quase todos comem errado. Não adianta os europeus e norte-americanos protestarem contra a exploração de nossas matas, mas consumirem todos os dias o fruto do extrativismo impensado em terras e águas brasileiras. Demagogia é o que não falta por aí. Precisamos de menos discursos, mais reflexão efetiva seguida de ação.

8- Família e Amigos

É urgente a redenção das ligações familiares, muito fragilizadas nessa quarentena. Para isso, temos que entender a importância de um núcleo familiar amoroso, com qualquer tipo de relação e parentesco de seus integrantes. A família e os amigos são fundamentais nesse momento para manter o difícil equilíbrio mental e profissional. Nesta sufocante pandemia, é mais fácil sobreviver no centro de um círculo de afetos. O apoio amoroso é uma dádiva, é uma parte fundamental para a futura redenção física e psicológica das pessoas, após a superação da situação alarmante em que nos encontramos.

9- Redenção dos cuidadores

Redenção das mães, das cuidadoras, das enfermeiras, que carregam os barcos em meio ao dilúvio. Dos pais, dos avós, dos médicos que seguram as bandeiras da ciência e da solidariedade em meio à tempestade. Redenção dos professores, dos coletores de lixo, dos entregadores, que dão toda a sua energia para manter a chama da vida acesa em nossas casas. Redenção dos artistas que colorem nossa trajetória.

10- Salvamento de todos

Finalmente, redenção dos indígenas, que são os mais antigos donos deste país. Que conhecem a floresta e seus poderes como ninguém e têm tanta sabedoria a nos transmitir. Ao mesmo tempo que tem gente tentando exterminar os velhos e os doentes deste país, temos um sábio como Ailton Krenak, trazendo luz ao Brasil dos batalhadores. Redenção através da ciência, que tenta explicar, a cada dia, a importância do cuidado sanitário para enfrentar a crise. Redenção de todos os terráqueos, liderados por homens e mulheres de bem, corajosos e incansáveis na batalha cotidiana pela vida em meio à pandemia, mesmo que ameaçados pelo vírus e desprezados pelos negacionistas. Temos que fazer com que esse confinamento seja transformador, ou não resistiremos como espécie: seremos os próximos dinossauros. Não eliminados por um grande meteoro, e sim, vergonhosamente, por nossa própria ignorância e incompetência.

Parque da Redenção, 2021.

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Luciana Tomasi

Jornalista, cineasta, escritora e professora de yoga